Aldous Huxley, autor de ‘Admirável Mundo Novo’, enviou carta para o aluno George Orwell após ler ‘1984’
Quando
um autor lança um novo livro, receber boas palavras de seu mestre sobre
a obra é mais importante do que qualquer resenha crítica ou sucesso
comercial – mesmo quando esse autor é um gigante como o inglês George
Orwell, e o livro em questão é o clássico 1984 – ainda mais
quando o mestre é outro gênio do estilo, o também inglês Aldous Huxley.
Quando o último e mais famoso livro de Orwell foi lançado, o autor fez
questão de que a editora enviasse uma cópia para Huxley, sua maior
referência – não é difícil perceber a influência de Admirável Mundo Novo sobre 1984.
Mais
do que se a resenha foi ou não elogiosa – a carta contém elogios,
ressalvas, comentários e percepções, sendo essencialmente bastante
positiva – a fala de Huxley é do tipo mais generosa e proveitosa
possível: uma fala aprofundada, que mergulha no livro e nas reflexões
que 1984 lhe provocaram.
O
olhar de Huxley sobre o livro é de tal forma profundo que chega a
refletir na própria percepção do autor diante de sua obra maior. “Eu
sinto que o pesadelo de 1984 está destinado a ser modulado ao pesadelo de um mundo mais semelhante ao que eu imaginei em Admirável Mundo Novo”, escreve Huxley para Orwell.
A
íntegra da carta, escrita de um mestre das palavras para outro, é uma
interessante reflexão não somente sobre o livro de Orwell, mas sobre
política, governos, estado, paranoia e controle.
“Wrightwood. Cal.
21 de outubro de 1949
Querido Sr. Orwell,
Foi
muito gentil da sua parte pedir aos editores que me enviassem uma cópia
do seu livro. Ela chegou enquanto eu estava em meio a um trabalho que
me demandava muita leitura e consultas de referências; e como a falta de
visão faz com que seja necessário racionar a minha leitura, eu tive que
esperar por muito tempo antes de ser capaz se embarcar em 1984.
Concordando
com tudo o que a crítica escreveu sobre isso, eu não preciso te dizer,
mais uma vez, o quão bom e profundamente importante o livro é. No lugar,
posso falar sobre o que o livro aborda, — a revolução definitiva? as
primeiras pistas de uma filosofia da revolução definitiva? — a revolução
que está além da política e da economia, que aponta para a subversão
total da psicologia e fisiologia do indivíduo — que podem ser
encontradas em Marquês de Sade, que se considerava o continuador, o
consumador de Robespierre e Babeuf. A filosofia da minoria dominante
em 1984 é de um sadismo que foi levado à sua conclusão lógica, indo além
do sexo e negando-o.
Se
a política do “boot-on-the-face” realmente pode continuar
indefinidamente me parece duvidoso. Minha crença é de que a oligarquia
dirigente irá achar formas menos árduas e perdulárias de governar e de
satisfazer a sua cobiça por poder, e estas formas irão se assemelhar
àquelas que eu descrevo em Admirável Mundo Novo. Recentemente, eu tive a
oportunidade de pesquisar sobre a história do magnetismo e do
hipnotismo animal, e fiquei bastante impressionado pela forma que, por
150 anos, o mundo se recusou a reconhecer seriamente as descobertas de
Mesmer, Braid, Esdaile e o restante.
Em
parte por causa do materialismo prevalecente e em parte por causa da
respeitabilidade predominante, filósofos do século 19 e homens da
ciência não estavam inclinados à investigar os fatos mais estranhos da
psicologia para homens práticos, como políticos, soldados e policiais,
para aplicar no campo do governo. Graças à ignorância voluntária dos
nosso pais, o advento da revolução definitiva foi adiado em cinco ou
seis gerações. Outro incidente da sorte foi a incapacidade de Freud de
hipnotizar pacientes com sucesso e seu descrédito ao hipnotismo. Isso
atrasou a aplicação geral do hipnotismo na psiquiatria por pelo menos 40
anos. Mas agora psico-análises estão sendo combinadas com a hipnose; e a
hipnose se tornou fácil e indefinidamente extensível através do uso de
barbitúricos, que induzem a um estado hipnótico e sugestivo mesmo nos
assuntos mais recalcitrantes.
Dentro
da próxima geração, eu acredito que os governadores do mundo irão
descobrir que o condicionamento infantil e a narco-hipnose são mais
eficientes, como instrumentos de governança, do que porretes e prisões, e
que a cobiça pelo poder pode ser completamente satisfeita ao sugerir
que as pessoas amem a sua servidão, ao invés de chicoteá-las e chutá-las
à obediência. Em outras palavras, eu sinto que o pesadelo de 1984 está
destinado a ser modulado ao pesadelo de um mundo mais semelhante ao que
eu imaginei em Admirável Mundo Novo. A mudança surgirá como resultado de
uma necessidade sentida [pelo governo] para o aumento da eficiência.
Enquanto isso, claro, pode haver uma guerra atômica e em maior escala
biológica — caso em que teremos pesadelos de tipos diferentes e
inimagináveis.
Obrigada mais uma vez pelo livro.
Atenciosamente,
Aldous Huxley”
© fotos: reprodução/fonte:via
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