Turistas podem ser escravocratas por um dia em fazenda “sem racismo”
PAISAGEM BUCÓLICA, campos verdejantes, clima agradável. A
combinação seria perfeita para degustar um café e descansar em uma
fazenda no Vale do Paraíba fluminense, não tivesse corrido ali tanto
sangue. A região, enriquecida pela exploração de trabalho escravo nas
fazendas cafeeiras, era conhecida também pela peculiar brutalidade com
que os escravizados eram tratados. Hoje a economia na região ganhou um
novo fôlego: está no mapa da cultura do Rio de Janeiro explorando um
turismo que naturaliza o racismo e a escravidão.
Por Cecilia Olliveiram, do The Intercept
Se
você desejar ser servido por uma pessoa negra vestida como escrava em
pleno 2016, você pode visitar, por exemplo, na Fazenda Santa Eufrásia,
em Vassouras, única fazenda particular tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional no Rio de Janeiro (Iphan-RJ) no Vale do Café,
construída por volta do ano de 1830. A partir de 1895, sete anos após a
abolição da escravatura, a propriedade teve diversos donos até ser
adquirida pelo Coronel Horácio José de Lemos, cujos descendentes são até
hoje proprietários da fazenda. Os planos de restauração foram aprovados em 2013e, atualmente, a fazenda recebe visitas diárias com agendamento.
A região tem um histórico
particular de selvageria contra negros feitos escravos. Tanto que, em
1829, o então fiscal da Vila de Valença (hoje Valença, município vizinho
a Vassouras), Eleutério Delfim da Silva, demonstrou preocupação com os “castigos brutais que os escravos daquela Vila recebiam”,
fazendo inclusive uma representação à Câmara expondo tais brutalidades.
Mas isso parece não ser uma questão relevante para quem explora o
potencial turístico da região. As pessoas que passam um dia descontraído nessas
senzalas e casas grandes teriam coragem de pegar um trem na Polônia,
rumo a Auschwitz, dividindo o assento com atores judeus
sorridentes fantasiados de seus ancestrais?
Quando viajam para a Europa e visitam lugares como o Museu do Holocausto em Berlim, ou até mesmo em Curitiba,
turistas se compadecem da dor sofrida pelo povo judeu, escravizado e
exterminado pelos nazistas. Mas raramente fazem algum paralelo com os
horrores da escravidão dos africanos. Choram, passam mal, postam
indignação nas redes sociais e depois são capazes de passar um fim de
semana ouvindo um sarau numa fazenda como essa, sendo servidos por
pessoas vestidas de escravas e ciceroneados por sinhás, para fazer uma
“volta ao passado”, sem nenhum senso crítico sobre a questão. E isso
acontece porque o amanhã é priorizado em detrimento do ontem, como
aconteceu no centro da capital fluminense com a construção do genérico
Museu do Amanhã, erguido onde foi o ponto de chegada do maior contingente de negros e
negras feitos escravos da história da humanidade. Os governos têm
optado sistematicamente por enterrar essa parte da história.
“Racismo? Por causa de quê? Por que eu me visto de sinhá e tenho mucamas que se vestem de mucamas? Que isso! Não! Não faço nada racista aqui!”
“Geralmente
eu tenho uma mucama, mas ela fugiu. Ela foi pro mato. Já mandei o
capitão do mato atrás dela, mas ela não voltou (…) Quando eu quero pegar
um vestido, eu digo: ‘duas mucamas, por favor!’. Porque ninguém alcança
lá em cima.” Parece 1880, mas a frase é dita por Elizabeth Dolson, uma
das bisnetas do coronel Lemos e proprietária da Fazenda Santa Eufrásia,
ao receber turistas em suas terras, como pode ser visto nesse vídeo,onde ela se apresenta como se fosse uma sinhá.
As visitas ainda são guiadas por ela, vestida com roupas de época,
acompanhada de mulheres negras vestidas como escravas, servindo quem se
disponha a pagar entre R$ 45 e R$ 65 pelo serviço.
Elizabeth
viveu em Chicago (EUA) por 23 anos, onde trabalhava com turismo, e diz
ter trazido de lá a ideia de encenar a escravidão, desconsiderando todo o
debate sobre escravidão e raça feito nos EUA e Brasil. “Racismo? Por
causa de quê? Por que eu me visto de sinhá e tenho mucamas que se vestem
de mucamas? Que isso! Não! Não faço nada racista aqui. Qual é o
problema de ter… não!”, respondeu, desconcertada, ao ser questionada
sobre o racismo de seu teatro.
A sinhá tem um empregado que se
veste de mucamo e contrata – de acordo com a demanda – mulheres para se
vestirem de mucamas. “É um empregado, que mora aqui, que me ajuda, que
se veste de mucamo também. Mas ele é branquinho! Então, a cor não tem
nada a ver. Eu sou mais morena que esse empregado”, justifica.
Essa postura não é vista como um problema. Em portais com dicas de turismo
é possível ver elogios como: “D. Elisabeth nos recebe com gentileza,
com trajes da época e nos conta a bela história da fazenda e de sua
família”.
Para o historiador Luiz Antônio Simas, colégios e
universidades ensinam a pensar exclusivamente com a cabeça do ocidente.
“A escola brasileira é reprodutora de valores discriminatórios e inimiga
radical da transgressão necessária. Não adianta a adoção de cotas para
negros e índios se o ambiente escolar continuar reproduzindo apenas uma
visão de mundo branca, cristã, européia, fundamentada em conceitos
pré-concebidos de civilização que negam os saberes ancestrais e as
invenções de mundo afro-ameríndias”, diz.
História sem história
À época do primeiro recenseamento nacional,
em 1872, 58.2% da população de Vassouras era escrava, quase 60% dos
homens e 56.4% das mulheres, para um total de pouco mais de dez mil
habitantes. Situação parecida com a da vizinha, Valença, onde fica o maior quilombo do Estado do Rio. Em1873 havia 27 mil escravos em Valença,
o que equivalia a mais de 70% da população da época. Hoje, quase metade
da população valenciana é negra, mas a proporção de pessoas brancas que
ganham acima de cinco salários mínimos é 29 vezes maior do que o de
negras (pretas e pardas). Por outro lado, pessoas negras ganham até dois
salários mínimos numa taxa 1,7 vez maior do que seus vizinhos brancos.
Ou seja, os negros em Valença — assim como no resto do país — trabalharam
muito, deram o sangue — literalmente — mas não conseguiram se mover na
pirâmide social. Por outro lado, os donos de fazendas — que já não
pagaram por trabalho — são indenizados quando suas terras são
reconhecidas como terras quilombolas, aquelas onde pessoas escravizadas e
seus descentes encontravam refúgio e resistiam contra a escravidão.
É
caso do Quilombo São José da Serra, em Valença. “Hoje é um dia muito
importante, porque hoje nós vamos ter uma vitória, que a gente já vinha
atrás dela não é de hoje.” O hoje, dito por Tio Mané,
foi em abril de 2015. “Sou nascido e criado aqui. Tô com 95 anos, mas
nascido aqui mesmo.” Tio Mané nasceu livre, 12 anos após a abolição, na
terra onde sua mãe foi escravizada e onde hoje cria filhos, netos e
bisnetos. No quilombo vivem aproximadamente 200 negros, que são a sétima
geração desde os primeiros africanos feitos escravos comprados para
trabalhar nas lavouras de café da fazenda de mesmo nome, São José.
Há pouco mais de um ano a Justiça reconheceu
a área de 159 hectares como terra quilombola. Os proprietários foram
indenizados em R$ 569 mil pela área. Escravizados renderam ganho duplo:
foram forçados a trabalhar por anos e, agora, rendendo indenização na
terra onde foram explorados.
Política Pública Racista
“Somos
todos iguais.” “Sou neto de imigrantes e meus pais trabalharam muito
para chegarem onde chegaram.” Não é raro se deparar com questionamentos
como estes na tentativa de colocar em xeque políticas públicas de
reparação – tais como a concessão de títulos de terras a descendentes de
pessoas escravizadas e cotas – fazendo a comparação de que “meu pai
chegou aqui sem nada e prosperou”.
Mas não é bem assim. O Brasil
incentivou a vinda estrangeiros brancos por meio de políticas públicas,
com o intuito cristalino de embranquecer a população, já que a negritude era vista como um problema a ser enfrentado.
Ainda na Primeira República, o Decreto nº 528, de 28 de junho de 1890,
sujeitava à autorização especial do Congresso a entrada de pessoas
vindas da Ásia e da África. O intuito de clarear a população foi
reiterado ao longo dos anos. Projeto de lei, em 1921
deliberava que “fica proibida no Brasil a imigração de indivíduos
humanos das raças de cor preta”. Dois anos depois, foi apresentado
projeto que dizia: “É proibida a entrada de colonos da raça preta no
Brasil e, quanto ao amarelo, será ela permitida, anualmente, em número
correspondente a 5% dos indivíduos existentes no país”. Anos mais tarde,
o Decreto-lei nº 7.967/1945,
sobre a política imigratória do Brasil, estabelecia que o ingresso de
imigrantes no país deveria se dar observando “a necessidade de preservar
e desenvolver, na composição étnica da população, as características
mais convenientes da sua ascendência européia”.
Através da imigração subvencionada,
famílias brancas inteiras ganhavam passagens pagas pelo governo para
emigrarem para o Brasil. Já os fazendeiros arcavam com os gastos do
colono durante o seu primeiro ano de vida no país. Além disso, os
colonos receberiam um salário fixo anual e mais um salário de acordo com
o volume da colheita, fixado por alqueire de café produzido. Ou seja,
não era só se esforçar.
Com a entrada de imigrantes, parlamentares
vislumbraram a esperança de um Brasil mais branco. Congressistas
começaram a articular mudanças na Constituição de 1934,
com medidas que demonstrassem o que a sociedade branca e alfabetizada
idealizava para a educação no Brasil, promovendo a eugenia no país.
A mesma Constituição que estabeleceu a garantia de ensino primário e sua gratuidade em todo o estado nacional brasileiro, também estabelecia, em seu artigo. 138: “estimular a educação eugênica”, ou seja, o governo estava apostando no “aperfeiçoamento da espécie humana“,
através de cruzamento entre os “bem dotados biologicamente” e também o
desenvolvimento de programas educacionais para a reprodução consciente
de “casais saudáveis”, o cerne do nazismo. O artigo 138, estabelecia
então que os mulatos, negros ou deficientes (de qualquer nível) eram
limitados perante a educação, e que ações de ordem social, filantrópica
ou educativas seriam apenas paliativas e não resolveriam o problema da
raça.
Esse documento durou poucos anos, mas a mentalidade
persistiu. Anos mais tarde, o Decreto-lei nº 7.967/1945, sobre a
política imigratória do Brasil, estabelecia que o ingresso de imigrantes
no país deveria se dar observando “a necessidade de preservar e
desenvolver, na composição étnica da população, as características mais
convenientes da sua ascendência européia”.
Atualmente, temos uma
lei que define o crime de racismo e outra que define injúria racial, que
tem penas mais brandas e é mais comumente aplicada. A aplicação
eufemística da lei é mais um exemplo de como o Brasil continua a negar a
existência do racismo.
Como bem disse Joaquim Nabuco: “Não basta
acabar com a escravidão. É preciso destruir sua obra”. Mal acabamos com
um, e estamos longe de acabar com o outro.
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