NG - Lontras nas ilhas Shetland
              Não faz muito as lontras-europeias estavam quase extintas devido à contaminação dos rios. Mas agora elas estão de volta

Soberanas lontras dos rios:

História contada por um fotografo e mergulhador

 

Charlie e eu saímos em busca das lontras-europeias, ambos vestidos com trajes de mergulho, nossos corpos quase submersos, flutuando junto à superfície do mar. Navios petroleiros deslizam rumo aos cais e o gás queima em labaredas no terminal petrolífero de Sullom Voe. Esta é a ilha Shetland, na extremidade norte das ilhas britânicas. Helicópteros vindos das plataformas no mar do Norte pousam com estardalhaço no aeroporto atrás de nós, mas dão a impressão de fazer parte de outro mundo.


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Charlie Hamilton James fotografa as lontras-europeias desde que se apaixonou por elas durante as décadas em que começaram a declinar e, desde então, vem acompanhando de modo obsessivo a recuperação das populações desses animais. Ele sabe como se aproximar disfarçadamente de uma lontra e me ensinou a técnica: com o rosto afundado o máximo possível na água, o capuz de neoprene bem abaixado e em completo silêncio – nenhum sussurro (melhor fazer gestos), a respiração calma, os pés-de-pato imóveis: só assim, e com alguma sorte, dá para chegar perto delas.

 
                NG - Lontra abocanhando um caranguejo

Pequenos peixes achatados se dispersam diante de nossos pés nos baixios. Duas focas se acercam curiosas, os olhos esbugalhados, com os gordos corpos submersos. Mas a lontra que parecia estar por ali, e uma hora atrás surgiu no binóculo como uma distante silhueta tripartida – o disco da cabeça, o dorso arqueado, uma cauda longa e forte (ou, como é conhecida, um “leme”) – agora havia desaparecido. É bem assim que costuma se exibir o macho das lontras, o leme proeminente, como uma espécie de aviso arrogante para os outros de que aquele território já tem dono. Ficamos à espera, observando, o frio penetrando nos ossos.

 
                NG - Lontra em rio de Dorset

Então Charlie me cutuca e aponta uma pedras cobertas de vegetação perto da costa. Uma massa empapada de algas Fucus (F. vesiculosus e F. serratus), num emaranhado de tonalidade ocre pardacenta. Um trecho qualquer do litoral. Vazio. Então eu a vejo. Um montículo de carne macia logo acima da maré. A pele achocolatada em via de secar, por tantos séculos cobiçada por seu calor e espessura, agora delineia morros com os movimentos ondulantes do animal na água. Medindo mais de um metro e pesando entre 6 a 9 quilos, ali está ela adormecida, uma exuberante lontra de pelo reluzente, deitada em seu abrigo longe do vento. Sua barriga e pescoços pálidos virados para cima, a pele franzida avolumando-se ao seu redor em dobras, as quatro pernas no ar. 


                NG - Duas lontras brincando

Está roncando? Não tenho certeza. Os compridos bigodes, que servem para captar a menor movimentação na água, os sensores reagindo à leve pressão de uma cauda de peixe tremulando adiante, projetam-se de seu focinho, tão longos de cada lado quanto a largura da cabeça. Esta é um agrupamento de antenas, e o seu corpo todo um sistema de busca, perseguição e destruição. Não agora, porém. Agora a lontra é o soberano em seu leito de descanso. O corpo descontraído exala confiança, o perfeito relaxamento de um predador de primeira linha, desfrutando da opulência de sua existência animal.


                NG - Lontra nas ilhas Shetland

Há apenas uma espécie de lontra nas ilhas Britânicas, a Lutra lutra, ou lontra-europeia, que vive tão bem na água do mar quanto na água doce. A única diferença é que as lontras marinhas precisam se banhar em água doce com frequência para manter a pele sem sal e assim preservar o seu isolamento térmico. Esse é um animal com o qual os seres humanos estão familiarizados há milênios. Provavelmente era um dos mamíferos mais difundidos no Velho Mundo, e o nome dele estava presente na língua falada pelos europeus primitivos há milhares de anos. 

 
                NG - Hamilton James
              Hamilton James realizou experiências por quatro anos no rio próximo à sua casa no West Country inglês, para finalmente aperfeiçoar seu sistema de captura de imagens das lontras na água.

As lontras eram presença constante nos vales fluviais onde se estabeleciam os grupos humanos, e eram com frequência capturadas em armadilhas, perseguidas por cães e maltratadas por pescadores. Mais tarde, o rosto da lontra, sua “máscara”, era preferido nos mais elegantes sporrans, aquelas bolsas de couro peludo usadas pelos escoceses na cintura, sobre o kilt. “Todos aqueles que criam Cães que caçam Lontras deveriam receber uma Pensão da Comunidade”, afirmou o grande escritor Izaak Walton em seu livro The Compleat Angler [O Pescador Completo], de 1653. Todavia, os caçadores de lontras jamais chegaram ao ponto de aniquilar a espécie, nem as próprias lontras acabaram com os estoques de peixe. Com isso, uma espécie de equilíbrio entre as lontras e os seres humanos perdurou durante séculos.


                NG - Lonta em algas Shetland

As estimativas sobre a quantidade de lontras no decorrer da história são precárias, quando não impossíveis. A capacidade que têm as lontras de desaparecer, de sumir na água, de se confundir com o pano de fundo como se jamais tivessem passado por ali fez com que se tornassem um segredo onipresente na paisagem, ainda que oculto. Essa própria intangibilidade era o que caracterizava as lontras.


                NG - Lontra em um riacho de Dorset

Assim, os primeiros sinais do desastre, na década de 1950, mal foram entendidos. Na mesma época, também teve início o rápido declínio dos falcões-peregrinos. Os problemas foram se avolumando a partir da década de 1940, com o uso de inseticidas, fungicidas, compostos organoclorados e DDT, um destruidor de todo o tipo de fauna silvestre. Essas substâncias químicas eram usadas na indústria para o processamento de lã e tecido, a eliminação de insetos e fungos, a conservação de sementes e o tratamento de ovelhas sarnentas. Da década de 1950 à de 1970, os compostos organoclorados e os PCBs, usados na refrigeração de transformadores elétricos e como estabilizantes de tinta e vários outros produtos, acabaram poluindo de maneira generalizada os cursos d’água. 


                NG - Filhotes de lontra brincando

Tais substâncias persistentes não se desintegram nem desaparecem quando lançadas no meio ambiente. Elas se acumulam à medida que vão se movendo pela cadeia alimentar acima: uma quantidade ínfima absorvida por um micróbio, pouco mais por camarão microscópico, ainda mais em uma enguia ou um peixe pequenos, bem mais nos grandes peixes predadores, atingindo a concentração máxima nos corpos dos predadores no topo da cadeia, como é o caso das lontras. O que deveria ser um sistema para transmitir nutrição acabou se transformando em um concentrador de venenos.


                NG - Lontra nas ilhas Shetland
Mais de uma década de ignorância e inércia se passou. Somente em meados da década de 1960, o uso dos compostos organoclorados em ovelhas foi proibido na Inglaterra, em grande parte porque foram identificados como o motivo do declínio das populações tanto dos falcões peregrinos como de outras aves e mamíferos. Mas continuaram sendo usados como protetores de sementes até 1975 (e com algumas finalidades especializadas até 1992). Mesmo quando proibidos, foram substituídos por organofosfatos e piretroides sintéticos que também eram altamente prejudiciais para os ecossistemas. Somente em 2006 foram completamente eliminadas essas substâncias que vinham provocando a redução da fauna dos rios ingleses por mais de meio século.

 
                NG - Lontra

Nesse período, a população de lontras sofreu drástica redução, talvez devido à falta de peixes, talvez devido ao envenenamento de lontras individuais. De acordo com um levantamento nacional realizado no final da década de 1970, apenas 6% de 2940 locais ribeirinhos ingleses exibiam indícios da presença de lontras. Em grandes trechos da Inglaterra, não restava mais nenhuma lontra-europeia. Os rios haviam morrido, e as lontras acabaram com eles. Apenas no extremo oeste e na divisa com o País de Gales, os animais haviam sobrevivido. As lontras desapareceram também da Holanda, Bélgica e Luxemburgo. E já não mais eram encontradas em grande parte da França, Alemanha e Itália. Também se tornaram raras em quase toda a Noruega e Suécia. Só sobraram populações significativas na Escócia e no Leste Europeu, mas em outras partes tudo indicava que a lontra-europeia estava condenada a se extinguir por completo.

 
                NG - Lontras nas ilhas Shetland

No entanto, ainda que de modo terrivelmente lento, à medida que eram proibidos os componentes químicos, a população de lontras começou a se recuperar. Até 1984-86, a proporção de margens de rios ocupadas por lontras-europeias havia subido para 10%, chegando a 59% em 2009-10. Pouco a pouco, as lontras foram retornando à região leste do país, de modo que agora apenas a área de Londres e algumas cidades industriais do norte continuam sem esses animais.

Tal recuperação, porém, continua sendo precária. Uma pequena população em Kent acabou desaparecendo, talvez devido a atropelamentos em rodovias. Em alguns condados ingleses, acredita-se que as mortes ocasionadas por carros estejam no mesmo nível que a geração anual de filhotes. Quase todos os cursos d’água ingleses apresentam uma poluição difusa e de baixa intensidade, e deles são retirados volumes excessivos de água. Análises do pelo das lontras mortas por carros revelam resquícios de medicamentos antiinflamatórios, como ibuprofeno e diclofenaco. Em algumas áreas onde ocorreu recuperação significativa das lontras, há um acentuado aumento nos ferimentos infligidos umas às outras pelas lontras, provavelmente como resultado de competição pelo território.


                NG - Lontra fêmea no oeste da Inglaterra
Foto: Charlie Hamilton James

A situação precária, mas nada sombria. Charlie e eu fomos a um rio em Dorset, no sul da Inglaterra. No centro de uma pequena cidade, em pleno dia, com as pessoas cruzando as pontes sobre o rio entre o supermercado e o parque central, levando os cães ou os filhos para passear, observamos durante quatro horas uma família de lontras, a mãe e dois filhotes quase adultos, pescando e brincando no rio. As pessoas paravam e conversavam sobre as “suas” lontras, surpreendidas com a nossa surpresa diante delas. Afinal, elas vinham aparecendo com regularidade na cidade havia um par de anos.

Mas, quando se olha melhor, é impossível não ficar maravilhado com a vigorosa intensidade desses esguios corpos lisos, aninhando-se e abrindo caminho entre a vegetação ribeirinha, e ressurgindo salpicados de fragmentos esverdeados de lentilha-d’água, todos os três membros da família deslizando com frequência uns pelos outros, intensamente sociáveis, pescando e perseguindo no leito do rio peixes grandes e pequenos. É uma vida movimentada e impetuosa, de alta competitividade: voltam dos mergulhos repetidos com presas entre os dentes, logo em seguida destroçadas pelos molares do fundo, e uma após a outra as lontras vão mastigando com a cabeça erguida e o ar satisfeito de alguém que acabou de ganhar na loteria e está feliz da vida em um restaurante, saboreando um magnífico filé.


 

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