Alan Turing, pai da computação, sofreu castração química e foi proibido de entrar nos EUA por ser homossexual
Para o grande matemático e cientista da computação inglês Alan Turing, não bastou ter ajudado intensamente a salvar a Inglaterra e o mundo da Segunda Guerra Mundial, nem ter inventado o computador, criado a base fundamental para os estudos sobre inteligência artificial ou mesmo os muitos anos de serviço à rainha decifrando códigos para o governo inglês – nada disso impediu que ele fosse processado, condenado, preso e severamente punido por sua orientação sexual. Turing foi um dos quase 50 mil homens detidos por serem homossexuais na Inglaterra. Antes de morrer, foi quimicamente castrado, proibido de trabalhar e de entrar nos EUA por conta de sua condenação.
A primeira Parada do Orgulho Gay na Inglaterra, em 1972
Até 1967, ser homossexual na
Inglaterra e no País de Gales era crime passível de prisão. No resto do
Reino Unido a situação é ainda pior: a Escócia só descriminalizou
relações homossexuais em 1980, e a Irlanda em 1982. Desde
meados dos anos 2000, no entanto, a Inglaterra tenta contornar os graves
efeitos de tais leis, com o reconhecimento da união entre pessoas do
mesmo sexo, a legalização do casamento homossexual e outras diversas
medidas que banem e punem todo tipo de discriminação. Até então, porém,
as leis discriminatórias foram cumpridas por séculos, e o efeito de tal
perseguição é enorme: quase 50 mil homens foram condenados no país – entre eles o escritor Oscar Wilde e Alan Turing.
O matemático Alan Turing
Agora, uma nova lei anulou tais
condenações, “perdoando” esses “crimes” passados. A decisão entrou em
vigor no dia 31 de janeiro de 2017, e foi batizada como Lei Turing, em
homenagem ao matemático. É no mínimo curioso ver o governo
“perdoando” comportamentos que jamais deveriam ou poderiam ser
considerados crimes inicialmente (o crime, no caso, foi do próprio
governo em perseguir indivíduos por sua orientação sexual), mas ainda
assim é um importante passo dado pelo governo inglês na direção da
igualdade de diretos e pela reparação de absurdos que eram vigentes, em
uma perspectiva histórica, até ontem.
O escritor irlandês Oscar Wilde
Oscar Wilde foi condenado no auge de seu sucesso, em 1895 – cinco anos após a publicação da obra-prima O Retrato de Dorian Gray, e poucos meses após a estreia da grande peça de Wilde, o sucesso absoluto The Importance of Being Earnest. Wilde
foi condenado a dois anos de reclusão e trabalhos forçados, ao longo
dos quais ele viu sua saúde e reputação serem arruinadas.
Passado o período de encarceramento, depois de solto Wilde foi viver na
França, mas sua produção literária já era quase nula. Tomado pelo
alcoolismo e a sífilis, o escritor morreu em 30 de Novembro de 1900, em
Paris, com somente 46 anos.
O caso de Alan Turing também se destaca
(e batiza a lei) não só pela importância para a humanidade dos estudos e
trabalhos do cientista, mas igualmente por seu triste fim. Em
1952 Turing foi condenado por atos homossexuais e indecência (após
admitir seu relacionamento com outro homem) e, para escapar de ser
preso, ele aceitou a castração química como sua punição. Como
se não bastasse as injeções que lhe retiraram a libido, provocaram
impotência e outras doenças, Turing foi impedido de seguir seu trabalho
de consultor de criptografia para o governo (por perder sua permissão de
acesso a informações confidenciais) e proibido de entrar nos EUA. Dois
anos depois, Turing morreu por envenenamento, aos 42 anos (até
hoje não se sabe se o cientista se suicidou, se simplesmente ingeriu
acidentalmente o veneno ou até mesmo se foi assassinado).
Turing já havia recebido “perdão” da
Rainha em 2013, quando a Inglaterra enfim legalizou o casamento
homossexual, e antes, em 2009, o então primeiro-ministro Gordon Brown
havia publicamente feito um pedido de desculpas oficial pela maneira
“aterradora” com que o cientista foi tratado. “Milhares de
pessoas se uniram para exigir justiça para Alan Turing e reconhecimento
da forma aterradora com que foi tratado. Ainda que Turing tenha sido
tratado sob as leis da época e nós não possamos voltar no tempo, seu
tratamento foi evidentemente injusto e eu tenho o prazer de ter a chance
de pedir profundas desculpas por todos pelo que lhe aconteceu. Então,
em nome do governo britânico e de todos que vivem em liberdade graças ao
trabalho de Alan eu orgulhosamente digo: Perdão, você merecia algo
muito melhor”, afirmou Brown, quase 50 anos após a condenação.
A máquina desenvolvida nos fim dos anos 1930 e início dos anos 1940 por Turing para decifrar as mensagens nazistas
As conquistas do trabalho de
Turing são estupendas: ele não só foi a peça fundamental para que as
mensagens nazistas criptografadas fossem traduzidas, encurtando em anos a
segunda guerra mundial e salvando estimadas 14 milhões de vidas,
como desenvolveu máquinas e trabalhos que se tornariam os passos
fundamentais para o desenvolvimento dos computadores modernos e dos
avanços em inteligência artificial.
As ‘costas’ do ‘computador’ de Turing…
…e o recheio, visto aqui em uma réplica criada recentemente
Paradoxalmente, desde sua morte
Turing passou a receber uma infindável coleção de reconhecimentos das
mais importantes universidades ou organizações do mundo pela importância
de seu trabalho. Desde 1966 um prêmio batizado com o nome do
matemático é oferecido pela Associação para Maquinaria da Computação, de
Nova York, para as maiores contribuições teóricas e práticas dentro da
comunidade da computação. A importância do prêmio é tamanha (e
assim, em igual proporção, a importância do trabalho do cientista que o
batiza) que o prêmio Turing é considerado como o Nobel do universo da
computação.
A famosa ‘placa azul’ que o governo inglês oferece aos seus cidadãos mais notáveis
O absurdo desse tipo de lei (que, vale
lembrar se repetiu em momentos diversos da história em praticamente
todos os países do mundo) não é medido, é claro, pela excelência do
trabalho dos homens que injustamente tiveram suas liberdades ou vidas
ceifadas simplesmente por amarem outros homens. Seja contra um dos
maiores cientistas da história, um dos grandes escritores de todos os
tempos, ou contra uma pessoa tida como “comum”, a monstruosidade de tal
lei é igual, e merece ser contornada, corrigida e afastada ao lixo da
história de forma exemplar e irrestrita. A guinada por parte do
governo inglês é uma importante conquista, e reparar publicamente os
erros do passado é o primeiro passo para que tais práticas fiquem
justamente onde merecem: em um vergonhoso, absurdo e distante passado.
Turing aos 16 anos
Turing tinha 40 anos quando foi
condenado; Wilde tinha 45 anos quando foi preso. Muitos outros, dentre
os 50 mil homens que foram condenados somente na Inglaterra (para não
falar sobre o incalculável que se pesou sobre homossexuais pelo mundo
todo ao longo da história) não puderam sequer realmente desenvolver seus
trabalhos, ou simplesmente viver sua vida como queriam, sem
agredir, machucar ou mesmo atrapalhar ninguém. Supor as contribuições
que Turing, Wilde e tantos outros poderiam ter oferecido caso o mundo
fosse então (e ainda hoje) um lugar simplesmente mais justo e igual é
uma carona certa às lágrimas.
A vida de Turing foi contada no cinema no filme O Jogo da Imitação:
O tamanho da injustiça de tais leis é a
própria medida humana, mas o gênio de Turing apagado pela ignorância
ajuda a sublinhar o absurdo da perseguição homofóbica e da burrice e
irracionalidade nas quais tais preceitos, de forma geral, são baseados.
Se a reparação não pode sequer começar a dar conta do horror da
homofobia, que ao menos a dor desses grandes homens, célebres ou não,
sirvam hoje para que a injustiça não se repita, nunca mais, não só de
forma geral mas principalmente pelas mãos do estado.
© fotos: reprodução
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