A vida e a luta de Angela Davis, desde os anos 1960 até o discurso na Marcha das Mulheres nos EUA
Na vida há os que escolhem os atalhos,
os caminhos mais rápidos e menos turbulentos, e há os que escolhem os
rumos mais difíceis, em prol de causas quase impossíveis em nome do que
acreditam e defendem, não importa o quão arriscado, acidentado e longo
possa ser esse caminho.
Negra, mulher, ativista, marxista, feminista e, acima de tudo, lutadora, a educadora e professora americana Angela Davis
certamente pertence ao segundo time – e não exatamente por escolha:
mulheres negras que quiseram um mundo mais justo, especialmente no
início dos anos 1960, não tinham outra possibilidade que não o árduo
caminho da luta.
Figura símbolo da causa negra na década
de 1960 nos EUA, Angela voltou recentemente ao centro das atenções da
mídia americana após seu contundente discurso na Marcha das Mulheres, em
Washington, D.C., nos EUA – no dia seguinte à posse de Donald Trump.
Sua história de resistência e luta, no entanto, é em muito a história da
mulher negra americana do século XX – e volta muitos anos atrás.
“Nós representamos as
poderosas forças de mudança que estão determinadas a impedir que as
moribundas culturas do racismo e do patriarcado heterossexual se ergam
novamente”, ela disse, em seu recente e histórico discurso.
Quando mais de 5 mil pessoas, mulheres
em sua maioria, marcharam nesse dia pelas ruas de Birmingham, no estado
do Alabama, nos EUA – como parte das quase 3 milhões de pessoas que
formaram a mais populosa manifestação política da história dos EUA – em
parte elas também, mesmo sem saber, iluminavam a história de Angela
Davis.
Nascida em Birmingham quando esta ainda
era uma cidade segregada, Angela cresceu em um bairro marcado pela
monstruosa tradição de se explodir casas de famílias e igrejas nos
bairros negros – preferencialmente com as famílias ainda dentro dos
locais.
Quando ela nasceu, uma das mais
populares organizações civis da época era a Ku Klux Klan, simbolizada
pelo hábito de perseguir, linchar e enforcar qualquer negro que lhe
cruzasse o caminho. Assim, quando fala sobre as forças racistas, os
extremistas conservadores e as consequências do racismo, machismo e da
desigualdade social, Angela Davis sabe o que diz.
Ainda adolescente ela organizou grupos
de estudo inter-raciais, que acabaram perseguidos e proibidos pela
polícia. Quando migrou para o norte dos EUA, Angela foi estudar
filosofia na universidade de Brandeis, no estado de Massachussetts, onde
calhou de ter como professor ninguém menos que Herbert Marcuse, o pai
da “nova esquerda” americana, que advogava justamente em favor dos
direitos civis, do movimento gay e da desigualdade de gêneros, entre
outras causas.
Em 1963, uma igreja foi explodida em um
bairro negro de Birmingham, e as 4 jovens mortas no atentado eram amigas
de Angela. Tal acontecimento funcionou como o estopim necessário para
que Angela tivesse certeza que não poderia ser outra coisa que não uma ativista na luta por direitos iguais – pelas mulheres, as mulheres negras, as mulheres negras e pobres.
As jovens mortas na explosão da igreja: Denise McNair, 11 anos;
Carole Robertson, Addie Mae Collins e Cynthia Wesley, todas com 14 anos
“A luta por liberdade do povo negro,
que moldou a própria natureza da história desse país, não pode ser
apagada com um gesto. Nós não podemos ser forçados a esquecer que a vida
negra importa. Esse é um país ancorado na escravidão e no colonialismo,
o que quer dizer, para o bem e para o mal, que a história dos EUA é uma
história de imigração e escravidão. Espalhar xenofobia, atirar
acusações de assassinatos e estupros e construir muros não vai apagar a
história”.
Angela Davis era tudo que o status quo
masculino e branco não tolerava: uma mulher negra, inteligente, altiva,
senhora de si, orgulhosa de suas origens e de seu lugar, desafiando o
sistema que oprimia e violentava seus pares sem jamais baixar a cabeça
ou o volume de sua voz.
E pagou por isso: em 1969, foi demitida
do cargo de professora de filosofia da Universidade da California por
sua associação com o partido comunista americano e com os Panteras
Negras, ainda que fizesse parte de uma frente pela resistência
não-violenta (e apesar da suposta liberdade de expressão de que os EUA
tanto se orgulham). Nos primeiros anos da década de 1970, Angela viria a
ser perseguida, colocada na lista dos 10 criminosos mais perigosos do
país, condenada e presa sem provas e com altas doses de
espetacularização.
Sua militância ganhou foco definido
também na luta por reformas no sistema prisional e contra
aprisionamentos injustos – e foi essa luta que a levaria justamente para
dentro da prisão. Angela estudava o caso de três jovens negros,
acusados de matarem um policial. Durante o julgamento, um dos três
jovens, armado, tomou o tribunal e o juiz como reféns. O evento
terminaria em confronto direto, com a morte dos três réus e do juiz.
Angela foi acusada de ter comprado as armas utilizadas no crime, o que,
pela lei da California, a ligava diretamente aos assassinatos. Angela
Davis foi tratada como uma terrorista de alta periculosidade, e
condenada e confinada em 1971.
A reação à sua prisão foi intensa, e
centenas de comitês pela libertação de Angela Davis criaram um
verdadeiro movimento cultural por todo o país.
Campanhas pela libertação de Angela
Para se medir o impacto da prisão e a
força do movimento, basta saber que as canções “Angela”, de John Lennon e
Yoko Ono, e “Sweet Black Angel”, dos Rolling Stones, foram compostas em
tributo à Angela. “Irmã, há um vento que nunca morre. Irmã, estamos
respirando juntos. Angela, o mundo olha por você”, escreveu Lennon.
Em 1972, depois de um ano e meio de
encarceramento, o júri (composto exclusivamente por pessoas brancas)
concluiu que, mesmo que fosse comprovado que as armas haviam sido
adquiridas no nome de Angela (o que não aconteceu), isso não era
suficiente para liga-la diretamente aos crimes, e considerou a ativista
enfim inocente.
“O esforço para salvar o planeta, para
parar as mudanças climáticas (..) para salvar nossa flora e fauna, para
salver o ar, esse é o marco zero do esforço por justiça social. (…) Essa
é uma marcha das mulheres e essa marcha representa a promessa do
feminismo contra os poderes perniciosos da violência do estado. E o
feminismo inclusivo e interseccional nos chama a resistir contra o
racismo, a islamofobia, o antissemitismo e a misoginia”, seguiu, já aos
73 anos, em sua fala na marcha recente.
Depois da prisão, Angela se tornou uma
destacada professora de história, estudos étnicos, estudos femininos e
história da consciência em diversas das maiores universidades dos EUA e
do mundo. A militância e a política, no entanto, jamais deixaram de
fazer parte de suas atividades, e Angela foi uma voz forte desde os anos
1970 até hoje, contra o sistema carcerário americano, a guerra do
Vietnã, o racismo, a desigualdade de gêneros, o sexismo, a pena de
morte, a guerra ao Terror de George W. Bush e em apoio à causa feminista
e gay de maneira geral.
Passadas mais de sete décadas de luta,
Angela foi um dos nomes mais importantes da Marcha das Mulheres, um dia
após a posse do novo presidente dos EUA, Donald Trump – e para melhor
entender o que está em jogo com as falas e as políticas de caráter
racistas, xenófobos e autoritárias do novo presidente, basta ler as
palavras ditas por Angela em seu discurso, no dia da Marcha.
“Nós nos dedicamos à resistência
coletiva. Resistência contra a biolionária especulação imobiliária e sua
gentrificação. Resistência contra os que defendem a privatização da
saúde. Resistência contra os ataques aos muçulmanos e aos imigrantes.
Resistência contra os ataques aos deficientes. Resistência contra a
violência do estado perpetrada pela polícia e pelo sistema carcerário.
Resistência contra a violência de gênero institucionalizada,
especialmente contra as mulheres trans e negras”, ela disse.
A Marcha reuniu mais de 3 milhões de
pessoas pelo mundo, superando, em Washington, por muitas milhares de
pessoas a própria posse de Trump, deixando claro não só que as posturas e
políticas misóginas e sexistas perpetradas pelo novo governo americano
não serão toleradas, como as tentativas de uma guinada conservadora,
racista e xenófoba ainda maior por parte do país encontrarão resistência
intensa por parte dos próprios americanos.
Angela Davis, portanto, segue
simplesmente lutando, com as armas e crenças que possui, desde os anos
1960, por um mundo melhor e mais justo. A boa notícia é que, mais uma
vez, ela não está sozinha.
“Pelos próximos meses e anos nós
teremos de intensificar a exigência por justiça social e nos tornarmos
mais militantes em defesa das populações vulneráveis. Os que ainda
defendem a supremacia do homem branco heterossexual patriarcal não
passarão. Os próximos 1,459 dias do governo Trump serão 1,459 dias de
resistência: resistência no chão, resistências nas salas de aula, resistência no trabalho, resistência na arte e na música.
Isso é só o começo, e nas palavras da inimitável Ella Baker, ‘nós, que
acreditamos na liberdade, não podemos descansar até que ela venha’.
Obrigado.”
© fotos: reprodução
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