40 anos de Poema Sujo e os 10 livros brasileiros de poesia que não podem faltar na sua estante

Em 2016, um dos livros de poesia mais importantes da história do Brasil completa 40 anos de sua publicação. Trata-se do Poema Sujo, de Ferreira Gullar, que viria a se tornar a obra mais reconhecida do poeta. Poema Sujo foi escrito em 1975, durante os duros anos da ditadura militar, direto do exílio de Gullar em Buenos Aires, e publicado no ano seguinte.


Marcado pela radicalidade nos versos e em sua longa extensão, o poema significa, de certa forma, a melancolia e a dureza de um período de derrotas e dores para o artista brasileiro. Por isso, em comemoração a esse aniversário, e em repúdio à toda repressão artística e intelectual, esse especial seleciona, junto do Poema Sujo, alguns dos livros de poesia mais importantes da poesia moderna brasileira.

1. Poema Sujo, de Ferreira Gullar (1976)
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Em 1975, o poeta maranhense Ferreira Gullar encontrava-se no exílio, em Buenos Aires, fugido da ditadura militar que lhe perseguia e arrasava o Brasil. Tomado pela tristeza da distância e da solidão, diante da impressão de que talvez fosse preso, até morto em pouco tempo, Gullar subitamente se viu tomado por uma necessidade convulsiva de escrever. Sabia que escreveria um poema longo, espécie de testemunho final.
Rememorando sua infância e lutando contra a dureza de expressar tudo que se passava em seu interior, Gullar preencheu 112 páginas de um poema ousado, belo e duro. O livro foi lançado no Brasil sem a presença do autor, por um esforço de Vinicius de Moraes, que gravou Gullar em Buenos Aires e trouxe a fita para o Brasil. Foi através dessa fita que os artistas da época conheceram a obra, e que o Poema Sujo pôde se tornar um livro – e assim, pressionar o governo a permitir a volta de Gullar a seu país.
(TRECHO)
turvo turvo
a turva
mão do sopro
contra o muro
escuro
menos menos
menos que escuro
menos que mole e duro menos que fosso e muro: menos que furo
escuro
mais que escuro:
claro
como água? como pluma? claro mais que claro claro: coisa alguma
e tudo
(ou quase)
um bicho que o universo fabrica e vem sonhando desde as entranhas
azul
era o gato
azul
era o galo
azul
o cavalo
azul
teu cu
tua gengiva igual a tua bocetinha que parecia sorrir entre as folhas de
banana entre os cheiros de flor e bosta de porco aberta como
uma boca do corpo (não como a tua boca de palavras) como uma
entrada para
eu não sabia tu
não sabias
fazer girar a vida
com seu montão de estrelas e oceano
entrando-nos em ti
bela bela
mais que bela
mas como era o nome dela?
Ferreira Gullar Ferreira Gullar
2. Paulicea Desvairada, de Mario de Andrade (1922)
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Publicado no ano da famosa Semana de Arte Moderna, em São Paulo, Paulicea Desvairada é o segundo livro de poesias de Mário. O “Prefácio Interessantíssimo” que abre o livro serviu como base estética e manifesto fundador do modernismo na literatura brasileira. É em Paulicea que Mario rompe completamente com as estruturas literárias e temas do passado, e abre o caminho para a nova poesia brasileira. O livro é, para ele, “áspero de insulto, gargalhante de ironia” tomado de versos de “sofrimento e revolta”. Sua inspiração é a cidade de São Paulo como um todo – seu provincianismo, sua população, seus hábitos, traduzidos em linguagem simples e coloquial.
ODE AO BURGUÊS (trecho)
Eu insulto o burguês! O burguês-níquel,
o burguês-burguês!
A digestão bem-feita de São Paulo!
O homem-curva! O homem-nádegas!
O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,
é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!
Eu insulto as aristocracias cautelosas!
Os barões lampiões! Os condes Joões! Os duques zurros!
que vivem dentro de muros sem pulos;
e gemem sangues de alguns mil-réis fracos
para dizerem que as filhas da senhora falam o francês
e tocam os “Printemps” com as unhas!
(…)
Mário de Andrade Mário de Andrade
3. Eu e outras poesias, de Augusto dos Anjos (1912)
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Ainda que seja reconhecido como pré-modernista, o livro Eu e outras poesias, do paraibano Augusto dos Anjos, traz tanta radicalidade nos temas e no vocabulário que não poderia ficar de fora dessa lista. Repleto de melancolia e fúria, morbidez e decadência, além de um entusiasmo novo pela ciência e a modernidade, o livro se impõe como um desafio aos polidos escritores parnasianos de então, construindo poemas ao redor de termos como cuspe, vômito, escarro, verme e mais. Augusto dos Anjos antecipa a tradição modernista de tratar de assunto considerados indignos, e o faz como um mestre, único, original e incontornável.
VERSOS ÍNTIMOS
Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!

Augusto dos Anjos Augusto dos Anjos
4. Pau Brasil, de Oswald de Andrade (1925)
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Estreia do modernista Oswald de Andrade na poesia, Pau Brasil foi considerado “o primeiro esforço organizado pela libertação do verso brasileiro”. Saltando de cabeça nos versos livres, Pau Brasil é um divisor de águas para a poesia que viria. Estão no livro as bases para Drummond, João Cabral, a Poesia Concreta, a síntese que caracterizaria a poesia marginal e mesmo a poesia contemporânea, além do uso de material não-poético transformado em poema, como a carta de Pero Vaz de Caminha. Era o fim da “eloquência balofa” de se imitar a Europa, iluminando um novo sentido para a relação entre a poesia e a identidade nacional.
PRONOMINAIS
Dê-me um cigarro
Diz a gramática Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas do bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro
ESCAPULÁRIO
No Pão de Açúcar
De Cada Dia
Dai-nos Senhor
A Poesia
De Cada Dia
Oswald de Andrade Oswald de Andrade
5. Poemas, Sonetos e Baladas, de Vinicius de Moraes (1946)
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Depois rebatizado como O Encontro Cotidiano, a primeira edição do livro foi impressa em apenas 372 exemplares, numerados e assinados pelo autor. Poemas, Sonetos e Baladas é o mais importante, e provavelmente o mais bonito livro de Vinicius de Moraes. Reunindo algumas das mais valiosas joias da coroa do poeta, como “Soneto de fidelidade”, “Soneto do amor maior”, “Balada do Mangue” e “Soneto da Separação”, Sonetos foi o mais firme passo literário dados por Vinicius na direção da popularização de sua poesia, assim como à qualificação de sua importância singular, oferecendo um lirismo sensual e denso, localizado, no entanto, em nosso cotidiano, reconhecível e próximo, como se tudo fosse nosso.

SONETO DE FIDELIDADE
De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento
Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.
E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.
Vinicius de Moraes Vinicius de Moraes
6. Alguma Poesia, de Carlos Drummond de Andrade (1930)
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O livro de estreia do poeta maior do Brasil foi lançado em 1930, em uma publicação independente, financiada pelo autor – e se tornou um marco da poesia brasileira. Alguma Poesia até hoje se afirma como uma obra impactante e arrojada, com o frescor de algo ainda por vir, mesmo já tendo quase 90 anos. Drummond alcança a mais bela e perfeita síntese da poesia moderna, apontando violentamente para o futuro, com profundidade e estilo, coloquialismo e humor. Alguma Poesia é um livro fundador e fundamental, que ainda hoje revela a força de quem viria a se tornar o maior entre os maiores da poesia nacional.
POEMA DE SETE FACES
Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.
As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.
O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.
O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.
Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.
Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.
Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.

Carlos Drummond de Andrade Carlos Drummond de Andrade
7. Estrela da Manhã, de Manuel Bandeira (1936)
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Em Estrela da Manhã Manuel Bandeira retoma algumas das formas mais tradicionais da escrita, sem permitir porém qualquer perda para as conquistas da vanguarda. Utilizando seu raro talento para os versos, seus ritmos e sentidos, Bandeira mistura religiosidade com erotismo, narrativas com versos, alcançando a máxima profundidade sem exageros ou desperdícios. Como alguém que declama algo simples e banal, Bandeira nos traz pela mão às profundezas da riqueza literária daquele que, segundo o crítico Ivan Junqueira, é “o poeta poeticamente mais culto e senhor de seus recursos de toda a literatura”.
POEMA DO BECO
Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte?
-O que vejo é o beco.
TREM DE FERRO (TRECHO)
Café com pão
Café com pão
Café com pão
Virge Maria que foi isso maquinista?
Agora sim
Café com pão
Agora sim
Voa, fumaça
Corre, cerca
Ai seu foguista
Bota fogo
Na fornalha
Que eu preciso
Muita força
Muita força
Muita força
(trem de ferro, trem de ferro)

Manuel Bandeira Manuel Bandeira
Viagem, de Cecília Meireles (1937)
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Amplamente diversificado em termos de formas e temas – variando entre versos livres e metrificados, assuntos profundos e densos ou banais – o livro Viagem somente não varia na forte feminilidade com que se aproxima e constrói seus poemas. Para Mário de Andrade, Viagem elevou Cecília à condição de uma das “maiores poetas nacionais”. Composto por 99 poemas, o livro transita entre a cultura popular, as banalidades do cotidiano, o ser poeta até a brevidade da vida e a certeza da morte, sempre sublinhados em gravidade e força pela reflexão tão silenciosa quanto contundente do olhar de poeta da autora.
MOTIVO
Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.
Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.

Cecília Meireles Cecília Meireles
8. 26 Poetas Hoje, de Heloisa Buarque de Hollanda (Organização. 1975)
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A antologia 26 Poetas Hoje, organizada por Heloisa Buarque de Hollanda, apresenta formalmente o que ficou conhecido como a Geração Marginal da poesia brasileira. Reunindo nomes como Francisco Alvim, Chacal, Cacaso, Charles Peixoto, Bernardo Vilhena, Roberto Piva, Ana Cristina César, Vera Pedrosa e Geraldo Carneiro, entre outros, a antologia funcionou como uma virada de página na poesia de então. Eram poetas à margem do establishment literário, que se valiam do cinismo, da despretensão, com uma coloquialidade absoluta, assimilando a cultura pop, o rock, o cinema, as falas de rua e dos bares, revelando uma nova leva de grandes poetas que passavam propositalmente ao largo do olhar das editoras e da academia.
LEOPOLDO (Francisco Alvim)
Minha namorada cocainômana
me procura nas madrugadas
para dizer que me ama
Fico olhando as olheiras dela
(tão escuras quanto a noite lá fora)
onde escondo minha paixão
Quando nos amamos
peço que me bata
me maltrate fundo
pois amo demais meu amor
e as manhãs empalidecem rápido

JOGOS FLORAIS I (Cacaso)
Minha terra tem palmeiras
onde canta o tico-tico.
Enquanto isso o sabiá
vive comendo o meu fubá.

Ficou moderno o Brasil
ficou moderno o milagre:
a água já não vira vinho,
vira direto vinagre.

PAPO DE ÍNDIO (Chacal)
Veio uns ômi di saia preta
cheiu di caixinha e pó branco
qui êles disserum qui chamava açucri
Aí êles falaram e nós fechamu a cara
depois êles arrepitirum e nós fechamu o corpo
Aí êles insistiram e nós comemu êles.

O poeta Cacaso, um dos participantes da antologia 
O poeta Cacaso, um dos participantes da antologia
9. A Teus Pés, de Ana Cristina César (1982)
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Reunindo três livros anteriores lançados em edições independentes – Luvas de Pelica, Correspondência Completa e Cenas de AbrilA Teus Pés é o mais bem acabado e influente livro de um dos poetas presentes na antologia 26 Poetas Hoje. Meio prosa poética, meio diário, meio cartas, meio autobiográfico e profundamente confessional, a presença de A Teus Pés nessa lista se justifica não somente pela alta voltagem e qualidade dos poemas reunidos como por ser uma das bases para a poesia feminina contemporânea, hoje a melhor e mais importante produzida no Brasil.
(…)
olho muito tempo o corpo de um poema
até perder de vista o que não seja corpo
e sentir separado dentre os dentes
um filete de sangue
nas gengivas

SETE CHAVES
Vamos tomar chá das cinco e eu te conto
minha grande história passional, que guardei a sete chaves,
e meu coração bate incompassado entre gaufrettes.
Conta mais essa história, me aconselhas como um
marechal do ar fazendo alegoria. Estou tocada pelo
fogo. Mais um roman à clé?
Eu nem respondo. Não sou dama nem mulher moderna.
Nem te conheço.
Então:
É daqui que eu tiro versos, desta festa – com
arbítrio silencioso e origem que não confesso –
como quem apaga seus pecados de seda, seus três
monumentos pátrios, e passa o ponto e as luvas.
Ana Cristina César 
Ana Cristina César
10. Distraídos Venceremos, de Paulo Leminski (1987)
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Alcançando a simplicidade absoluta das coisas realmente complexas, Distraídos Venceremos é o último livro de poemas lançado por Leminski em vida. É nele que o poeta revela com mais força sua impressionante capacidade de sintetizar em poemas curtos e haicais, quase como slogans, uma poética nova, pop e profunda, acessível e densa. Entre metapoemas, nos quais se vale da própria poesia do fazer poético como tema, a natureza, a vida, o tempo, vida e morte e temas cotidianos, Distraídos Venceremos defende a singularidade, o talento poético e a profunda erudição, tudo lambuzado de seu charme único, do último grande herói da poesia brasileira.
(TRECHOS)
Eu, hoje, acordei mais cedo
e, azul, tive uma idéia clara.
Só existe um segredo.
Tudo está na cara.
podem ficar com a realidade
esse baixo astral
em que tudo entra pelo cano
eu quero viver de verdade
eu fico com o cinema americano
isso de querer
ser exatamente aquilo
que a gente é
ainda vai
nos levar além
Paulo Leminski
Paulo Leminski

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